domingo, 18 de novembro de 2012

Os profetas e as profetisas são pessoas antipáticas




José Lisboa Moreira de Oliveira*


As ciências da religião nos mostram que nas culturas de todos os tempos sempre existiram os chamados grupos liminares. Estes grupos são formados por uma minoria de pessoas que, em alguns casos e ocasiões, chega até a ser reduzida a um indivíduo solitário (1Rs 19,10). Os grupos liminares se colocam no limiar, ou seja, na fronteira entre o real e o ideal. Costumam provocar as culturas, os grupos humanos, as sociedades e as comunidades. Eles, normalmente, chamam a atenção para a necessidade de fidelidade a valores que são pilares das sociedades. Por isso denunciam com veemência os desmandos, a corrupção e o afastamento das comunidades dos seus valores fundamentais. De um modo geral acusam as autoridades e lideranças, inclusive religiosas, responsabilizando-as pelo caos existente.
No judaísmo, no cristianismo e no islamismo esta função foi e ainda é exercida de modo particular pelos profetas e pelas profetisas. São eles e elas que se colocam nas fronteiras e esbravejam contra todas as formas de corrupção dos sistemas políticos e religiosos. Enfrentam as autoridades e apontam seus erros e suas mazelas. Por essa razão os profetas e as profetisas são pessoas antipáticas. Ninguém gosta delas, especialmente aqueles e aquelas que estão no poder. De um modo geral os profetas e as profetisas são perseguidos, caluniados, maltratados, banidos e até mesmo assassinados. São vistos como pessimistas e vaticinadores de desgraças, gente que só enxerga o que não está dando certo, incapazes de ver “as coisas boas”.
No judaísmo o representante clássico deste modelo de profeta é Miquéias, detestado pelo rei de Israel porque nunca profetizava coisas boas, mas somente desgraças (1Rs 22,1-40). Porque era sincero e mostrava a realidade nua e crua, o profeta foi insultado, maltratado e preso. Mas, além dele, se poderia dizer o mesmo de praticamente todos os outros profetas. Será suficiente citar alguns exemplos. Elias, que denuncia o conluio entre falsa religião e poder corrupto; que satiriza e ridiculariza os cantos e as danças religiosas histéricas (1Rs 18 – 19). Isaías, chamado a profetizar dentro do templo, a provocar cegueira, surdez e o embotamento do coração até que as cidades sejam destruídas e os campos devastados (Is 6,8-12). Jeremias, convocado por Javé a postar-se na entrada do templo para denunciar a falsidade da religiosidade do povo (Jr 7,1-28). Amós, que denuncia, rugindo como um leão, a exploração dos pobres pelos ricos, a justiça corrupta, o lucro fruto do roubo e a conivência do sistema religioso com tudo isso. Todos eles sofreram calúnias, perseguição e represálias.
Se nos voltamos para o cristianismo, vemos que ele nasce do sangue derramado do profeta Jesus que se recusou terminantemente a compactuar com a corrupção e os desmandos do poder religioso e civil. Foi preso, torturado e assassinado. Em vinte séculos de história cristã a lista dos mártires, das profetisas e dos profetas assassinados é longa e abarca praticamente todos os períodos. De uma forma geral os profetas e as profetisas do cristianismo sofreram perseguição e até o martírio por parte daqueles e daquelas que pertenciam à própria Igreja.
Em nossa época os profetas e as profetizas escasseiam. São raridades e verdadeiras pérolas preciosas que, de vez em quando, surgem em algum canto da terra. Mas, logo que surgem, são vistos com antipatia, perseguidos, maltratados e até assassinados. A nossa época, a nossa sociedade, as atuais Igrejas, continuam não suportando vozes proféticas. Quando não são caladas
para sempre, elas são abafadas. Aqui na América Latina e Caribe alguns desses profetas e profetisas, ainda vivos e resistentes, são ridicularizados e discriminados. Alguns recebem títulos “honoríficos” como “chorólogos” ou “viúvos e viúvas da Teologia da Libertação”. Grandes profetas, conhecidos internacionalmente, como, por exemplo, Irmã Dorothy, Padre Josimo, Dom Oscar Romero, Dom Hélder Câmara, o Cardeal Martini, José Comblin, Leonardo Boff, Gustavo Gutiérrez, José Antonio Pagola, André Torres Queiruga, são colocados no ostracismo pela oficialidade, desqualificados e até mesmo punidos por sua ousadia e coragem profética. Lembro que José Comblin foi tido, no final de sua vida, como o “gagá da libertação”. Escutei alguém dizendo que o Cardeal Martini, no final da vida, tinha se tornando um “demente” por causa do mal de Parkinson. Por isso passou a falar “bobagens”, como, por exemplo, a afirmação de que a Igreja Católica estaria atrasada em pelo menos 200 anos.
Nenhuma novidade. O autêntico profeta não pode ser tratado de outra forma. Do contrário, seria um falso profeta: “Aí de vocês, se todos os elogiam, porque era assim que os antepassados deles tratavam os falsos profetas” (Lc 6,26). Neste sentido, os profetas e profetisas de hoje, como aqueles e aquelas de ontem, se sentem bem à vontade quando são rotulados e discriminados pelos que compõem o sistema religioso e político injusto e corrupto. Não que gostem de sofrer. Não são e nem querem ser masoquistas. Porém, no momento em que, motivados pela fé e pela mística, decidem profetizar têm consciência de que o ódio, a calúnia e a perseguição serão companheiros inseparáveis de sua missão profética.
A Bíblia oferece critérios bem precisos para se distinguir o verdadeiro do falso profeta. O falso profeta está sempre a favor do sistema religioso e político. Ele é um árduo defensor dos dogmas, das autoridades religiosas e civis. É bajulador, subserviente, hipócrita, legalista e jamais se afasta dos cânones oficiais. Prediz sempre o sucesso e só fala de coisas boas. Porém, o verdadeiro profeta é autêntico, livre, independente, chama para a realidade e só se curva diante do projeto de Deus. Não tem medo de ser caluniado, perseguido, preso e ridicularizado (1Rs 22,13). O autêntico profeta não se incomoda de ser expulso da religião oficial e de ser tratado como herético e heterodoxo (Am 7,10-17). Ele sabe que tudo isso faz parte do seu ministério profético.
No momento atual os falsos profetas circulam livremente pela grande mídia, inclusive a mídia católica. As câmaras de TV, as páginas das grandes revistas, as colunas dos jornais e as editoras lhes dão sempre espaço. Quando morrem são incensados, exaltados e elevados à condição de heróis do povo. A grande mídia, ligada a grandes grupos econômicos e corruptos, não para de lhes fazer elogios. Tudo como sempre foi. Quanto ao verdadeiro profeta, ele não tem vez. É execrado ou completamente ignorado. Mas sabe-se que sua mensagem não será inútil, pois, mesmo morrendo, como a semente lançada na terra, produzirá frutos que revolucionarão o mundo (Jo 12,24-25). Por isso a vida e a voz dos profetas e das profetisas continuam a alimentar a esperança da humanidade.


[* Filósofo, teólogo, escritor, conferencista e professor universitário. Autor do livro Qual o significado da vocação e da missão, por Paulus Editora]

0 comentários :

Postar um comentário

Seu comentário é precioso para o nosso trabalho de evangelização.
Deus o (a) abençoe!