Lucas 11,1-13
“Ensina-nos a
rezar!:
O nosso texto de hoje nos traz o
ensinamento da Oração do Senhor, na versão Lucana. O Novo Testamento nos traz duas versões desta
oração - por sinal a única oração que o Senhor nos ensinou : Lucas 11,2-4 e
Mateus 6,9-13. Normalmente os cristãos
rezam na forma mateana, com sete petições e sem doxologia (oração de
louvor). A versão lucana só tem cinco
petições. A forma usada na Missa
acrescenta a doxologia “porque Vosso é o
Reino, o Poder e a Glória para sempre”,
baseada no texto trazido pela Didaché - um documento cristão do início do
segundo século. Alguns estudiosos
explicam as duas formas pelo fato que Lucas e Mateus estavam se dirigindo a
comunidades diferentes, com tradições diferentes. Mateus se dirigia a pessoas que tinham o
costume de rezar, mas que estavam correndo o risco de orar duma maneira muita
formal e rotineira (judeu-cristãos), enquanto Lucas estava escrevendo para
pessoas recém-convertidas (gentio-cristãos) e que precisavam aprender, talvez
pela primeira vez, a rezar continuamente.
Embora não haja unanimidade entre
exegetas sobre qual é a forma mais original, parece que o consenso tende em
favor da versão Lucana. A versão mateana
apresenta a forma mais litúrgica do seu uso (p.ex.“Pai Nosso” em lugar do simples “Pai”),
mas na verdade não há diferença essencial entre as duas versões. Baseando-nos no trabalho dum exegeta alemão,
Joaquim Jeremias, propomos a seguinte versão como a mais aproximada às palavras
aramaicas de Jesus (devemos sempre lembrar que Jesus falava em aramaico, os evangelhos
foram escritos em grego, e nós os lemos em português!):
“Querido
Pai, santificado seja o Teu nome; venha o Teu Reino; o pão nosso de amanhã nos
dá hoje; perdoa-nos as nossas dívidas,
como queremos perdoar os nossos devedores, e não nos deixes sucumbir à
Tentação”.
Seguindo este autor, tratamos a oração
como uma “oração escatalógica”, ou seja a oração da comunidade cristã que
experimenta o Reino como uma realidade já presente, mas que espera e pede a sua
consumação final.
Uma chave para a compreensão lucana da
Oração do Senhor, nós encontramos no primeiro versículo do texto:“ Um dia, Jesus estava rezando num certo
lugar. Quando terminou, um dos
discípulos pediu: “Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou os discípulos dele” (Lc 11,1). Essa frase nos faz lembrar que muitos
grupos religiosos do tempo de Jesus tinham uma oração que identificasse os seus
discípulos, como por exemplo, os Essênios, os Fariseus e os Batistas. Então o discípulo de Jesus pede uma oração
que pudesse identificar o seu programa de vida, como discípulos de Jesus. Então podemos ver a Oração do Senhor como
mais do que uma oração - como um “manifesto” da nossa proposta de vivência da
nossa fé. Vejamos mais de perto o texto:
1. “Querido Pai” ( ABBÁ):
É possível que muita gente tenha
dificuldade em rezar o “Pai Nosso” por causa da sua experiência com o seu
próprio pai. Se nós tivemos um pai
carinhoso, com quem desde criança nós nos sentíssemos bem, então teremos
facilidade de rezar a Deus como “Pai”.
Mas se o nosso pai era pessoa dura, ameaçadora, sem expressão de
carinho, então podemos ter mais dificuldade em poder nos relacionar com Deus
como “Pai Nosso”. Outras pessoas -
especialmente feministas - talvez achem que o título “Pai” para Deus traz
conotações demasiadamente masculinizantes, quando não machistas. Por isso, é importante aprofundar o sentido
bíblico do termo, e o que significava na boca de Jesus.
Quando o Antigo Testamento descreve Deus
como Pai, implica muito de que a nossa cultura atribui à mãe. O Antigo Testamento se refere a Deus como Pai
quinze vezes e enfatiza a ternura, a misericórdia, o carinho e o amor de Deus
para o seu povo. Isso fica especialmente
claro nos Profetas. Vejamos alguns
textos: “Serei um pai para Israel, e Efraim será o meu primogênito”. (Jr 31,9); “Será que Efraim não
é o meu filho predileto? Será que não é
um filho querido? Quanto mais o repreendo, mais me lembro dele. Por isso minhas entranhas se comovem, e eu
cedo à compaixão - oráculo de Javé” (Jr
31,20); “Eu tinha pensado contar você entre os
meus filhos, dar-lhe uma terra invejável ...esperando que você me
chamasse de“Meu Pai”, e não se afastasse de mim (Jr 3,19);“Quando Israel era
menino, eu o amei Do Egito chamei o meu
filho...fui eu que ensinei Efraim a andar, segurando-o pela mão.... Eu os atraí
com laços de bondade, com cordas de amor.
Fazia com eles como quem levanta até seu rosto uma criança; para
dar-lhes de comer, eu me abaixava até eles (Os 11,1ss).
Nestes textos
podemos sentir muitas das características que a nossa cultura ocidental atribui
à mãe - portanto o termo “Pai” no Antigo Testamento não traz qualquer conotação
machista.
Embora o Antigo Testamento fale de Deus
como “Pai” quinze vezes, jamais alguém invoca Deus como “meu Pai”, ou “nosso
Pai”. O respeito do judeu diante da
transcendência de Deus não permitia. Mas
nos Evangelhos nós achamos o termo “Pai” para Deus na boca de Jesus 170 vezes. Isso era coisa tão inédita que podemos ter
certeza que se trata duma palavra autêntica de Jesus e não somente proveniente
da Igreja primitiva. Marcos a usa 4
vezes, Lucas 15 vezes, Mateus 42 vezes e João 109 vezes! Na comunidade do Discípulo Amado, pelo fim do
primeiro século, “Pai” é o
termo para Deus.
A expressão que Jesus mesmo usava era
“Abbá”, uma palavra aramaica sem sinônimo em português. Fazia parte da linguagem da intimidade do
lar, um termo carinhoso usado tanto por crianças como por adultos, para o seu
pai. Então ultrapasse o sentido da
palavra nossa “papai”. Devemos dar muito
peso a este ensinamento de Jesus, pois embora não existe na literatura rabínica
um exemplo sequer do uso do termo “Abbá” para Deus, Jesus sempre se dirigia a
Deus deste jeito, exceto em Mc 15,34 ( quando na cruz, citando um salmo, ele
chama deus de “Eloí”, meu Deus). Jesus
então conversava com Deus com a segurança, intimidade e carinho com quem se
conversa na ternura do seio familiar. E
mais, ele autorizou os seus discípulos a usar o mesmo termo. Isso indica o novo relacionamento com Deus,
que Jesus nos trouxe. É algo além do
normal, poder reivindicar tal relacionamento com Deus. São Paulo mantinha o termo aramaico, mesmo
escrevendo em grego em Gálatas 4,6 e Romanos 8,15, quando ele diz:“A prova de que vocês são filhos é o fato de
que Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho que clama : Abbá
Pai!”(Gal 4,6); “..receberam um Espírito de filhos adotivos, por meio do qual
clamamos: Abbá, Pai!” (Rm 8,15)
O “endereço”
da oração determina não somente o nosso relacionamento com Deus mas com os
nossos irmãos e irmãs. Pois, se Deus é o
“Abbá” de todos nós, então somos todos iguais, e rezar esta oração exige que
nós não nos compactuemos com qualquer coisa que nos discrimine - racismo,
machismo, clericalismo, exploração etc.
Todas as petições seguintes da oração dependem
deste endereço. Pois não estamos nos
dirigindo a um Espírito perfeitíssimo, criador do céu e da terra, onipresente,
onipotente e onisciente! Estamos nos
dirigindo ao nosso “Querido Pai”, e é este novo relacionamento, um dom incrível
do próprio Deus, que faz possível as petições.
Por isso, na liturgia, a Igreja pede que se faça uma introdução à
oração, como “Orientados pela Palavra de Jesus, ousamos rezar”, para que nós
tomemos consciência da enormidade do dom de filiação que recebemos por Jesus.
2. “Santificado seja o Teu nome”
Na forma atual, esta petição pode
expressar tanto um louvor, (“Santificado seja o teu nome”) como petição (“Que o
Teu Nome se torne santificado”). No
contexto, devemos entendê-la como pedido.
Podemos entender melhor a frase se voltamos de novo para um profeta do
Antigo Testamento, Ezequiel: “Vou
santificar o meu nome grandioso, que foi profanado entre as nações, porque
vocês o profanaram entre elas. Então as
nações ficarão sabendo que eu sou Javé. quando eu mostrar a minha santidade em
vocês diante deles”(Ez 36,23).
Então, com
este pedido rezamos que o mundo chegue a conhecer o nome (isto é, a realidade
íntima) de Deus (que Ele é o nosso “querido pai”) através da nossa vivência. Se
torna uma oração missionária, com três elementos:
- primeiro, que nós cheguemos a conhecer
cada vez mais quem é Deus.
- segundo, que o mundo chegue a este
conhecimento através do nosso testemunho;
- terceiro, que a plenitude da revelação
da realidade de Deus venha logo; este é o aspecto escatalógico
3. “Venha o Teu Reino”
O tema central da pregação de Jesus era
a iminência do Reino de Deus. Se o
“nome” de Deus se refere à sua natureza íntima, o “Reino” se refere à sua
atividade. Pedimos aqui a consumação
final do Reino. É a oração da comunidade
que reconhece a presença do Reino, mas sente que ainda não é estabelecido
definitivamente entre nós. Temos outros
trechos do Novo Testamento que expressam este desejo com a palavra aramaica
“Maranathá”, ( Vem, Senhor Jesus!), por
exemplo 1 Cor 16,22 e Ap. 22,20.
A versão mateana que nós costumamos
rezar, acrescenta “Seja feita a vossa
vontade, assim na terra como no céu”.
Isso é outra maneira de expressar a mesma idéia, pois quando a vontade
de Deus é feita na terra como já se faz no céu, então o Reino estará plenamente
realizado entre nós.
4. “O pão nosso de amanhã nos
dá hoje”
Os primeiros dois pedidos almejam a
chegada do Reino na sua plenitude, mas as duas petições seguintes põe a ênfase
sobe o “agora”, o “hoje”!
A primeira dificuldade que enfrentamos é
com a tradução, pois aqui se usa uma palavra grega “epiousios” que não é usada
em outro lugar no Novo Testamento. Há
quatro sentidos básicos possíveis para este termo:
- necessário para a nossa existência
- para hoje
- para o dia que virá
- para o futuro
As várias
traduções usadas nas nossas bíblias (e seria bom verificar) refletem a dificuldade em ter certeza sobre o
que significa o termo no contexto desta oração.
Muitos exegetas concluem, com São Jerônimo, que a palavra quer dizer “dá nos hoje o nosso pão de amanhã”.
Aqui, “amanhã” significaria o “grande
amanhã” da parusia, da consumação final do Reino de Deus. Assim estamos pedindo que nós possamos
experimentar hoje o que pertence à plenitude do Reino.
E isso tem implicações muito concretas
para a nossa vivência. Pois jamais será
possível experimentar a plenitude do Reino enquanto falta o pão material na
mesa dos nossos irmãos e irmãs. Quem faz
este pedido se compromete com a luta por uma sociedade mais justa, mais fraterna,
onde todos possam ter uma vida digna.
Quando Jesus e os seus discípulos faziam
a refeição, era muito mais do que simplesmente tirar a fome. Significava o banquete messiânico, desejado
pelos profetas, onde todos teriam vida plena.
Quem reza esta petição, se compromete com a concretização duma sociedade
onde “todos tenham a vida e a vida em abundância” (cf.Jo 10,10), coisa
impossível sem o pão material nas mesas.
Não é possível participar do banquete
eucarístico, sem este compromisso concreto com a construção dum mundo sem
empobrecidos, onde todos terão “o pão nosso de cada dia”.
5.
“E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós queremos perdoar os nossos
devedores”.
Um dos grandes dons da era escatalógica
é o perdão. Já vimos em outros trechos
como Jesus manifestava este dom gratuito do Pai. Aqui pedimos que nós possamos experimentar
este grande dom, aqui e agora. Mas o
trecho levanta a questão da relação entre o perdão de Deus e o nosso perdão.
A maneira que nós rezamos o “Pai Nosso”
- “perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem
ofendido”- pode dar a impressão que estamos pedindo que Deus nos perdoe na
medida em que perdoamos os outros! Se
Deus vai nos perdoar conforme os critérios humanos, estamos em maus lençóis!! Aqui é necessário que olhemos melhor o que
significa “assim como”.
Quase todos os estudiosos estão de
acordo que esta frase não deve ser entendido como uma comparação entre o perdão
de Deus e o nosso. Diversas parábolas sugerem que o perdão de Deus precede o
perdão humano (cf. Mt. 18,23-25; Lc 7,41-47). O nosso perdão é conseqüência e
resposta ao perdão de Deus. Sendo
perdoados, não temos desculpa para não perdoar!
Mas qual é então o papel do perdão humano? (cf. Mt 6,14s). É que o
perdão de Deus só se torna real para mim quando eu o assumo na minha vida ao
ponto que procuro perdoar quem me ofendeu. O nosso perdão mútuo então é a prova
de até onde temos aceito o perdão de Deus.
Devemos então lembrar três pontos:
- O perdão de Deus sempre precede o perdão
humano;
- O perdão humano é reação ao perdão
divino;
- O perdão divino só se torna eficaz
para nós quando nós temos vontade de perdoar o outro.
Joaquim Jeremias explica a frase assim:
“Nós estamos
prontos a repassar a outros o perdão que nós recebemos. Dá-nos, querido Pai, o dom da era da
salvação, o teu perdão, para que, na força do perdão recebido, possamos perdoar
os que tem nos ofendido”. (J. Jeremias, A Oração do Senhor).
E o grande exemplo desta realidade
continua sendo a mulher “pecadora” de Lc 7, 36-50), cujo grande amor foi
conseqüência do grande perdão recebido de Deus.
6. “E não nos deixes sucumbir à tentação”
Este é o único pedido formulado em
termos negativos. Aqui não somente
pedimos para não cair nas pequenas ou grandes tentações que nós enfrentamos no
dia-a-dia, mas que não caiamos na Grande Tentação, de não acreditar na
realidade da presença do Reino, de perder a fé na ação transformadora de Deus,
de não acreditar mais na concretização da vontade de Deus. E este “sucumbir” não
vem normalmente “de vez” - é um processo lento, que pode acontecer sem que nós
demos conta. É o perder do elán, da
vibração com a causa do Reino, que reduz a religião a uma mera “cumprir
tabela”, sem alegria, sem esperança, - em fim uma frustração. Este pedido ecoa uma mensagem e advertência
clara dos evangelhos - a necessidade de vigilância! Estamos na luta escatalógica entre o bem e o
mal, onde até Jesus foi tentado. Aqui reconhecemos
a nossa fraqueza, a nossa tendência para o desânimo, e pedimos a força de Deus
para que não sucumbamos à Grande Tentação.
Assim a Oração do Senhor resume o
projeto de vida dos seus seguidores e discípulos. É uma oração que traz conseqüências bem
concretas para o nosso relacionamento com os irmãos e com a sociedade. É uma
oração que desinstala e desacomoda. Pois
nós estamos nos comprometendo com a construção diária do Reino, através do
seguimento de Jesus.
A segunda parte do trecho de hoje
insiste na necessidade de perseverança na oração. Faz contraste ( e não comparação!) entre Deus
e o amigo humano. Pois se o “amigo” só
atende o pedido para não ser amolado, Deus é bem diferente. Ele dará o mais importante - o Espírito
Santo, com todos os seu dons, àqueles que o pedirem! Peçamos as coisas pequenas - mas importantes
- necessárias para a nossa vivência diária, mas saibamos também pedir os
grandes dons do Reino, o perdão, o pão da vida, a misericórdia sem limites, que
Deus jamais negará!
Tomaz Hughes SVD
e-mail: thughes@netpar.com.br
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