Lc
1, 39-56
“Você
é bendita entre as mulheres”
O
evangelho da festa de hoje tem duas partes bem distintas, o encontro entre
Maria (grávida de Jesus) e Isabel (grávida de João); e, o Canto do Magnificat.
Para entender
o objetivo de Lucas em relatar os eventos ligados à concepção e nascimento de
Jesus, é essencial conhecer algo da sua visão teológica. Para ele, o importante
é acentuar o grande contraste, e ao mesmo tempo a continuidade, entre a Antiga
e a Nova Aliança. A primeira está retratada nos eventos ligados ao nascimento
de João, e tem os seus representantes em Isabel, Zacarias e João; a segunda
está nos relatos do nascimento de Jesus, com as figuras de Maria, José e Jesus.
Para Lucas, a Antiga Aliança está esgotada - os seus símbolos são Isabel,
estéril e idosa, Zacarias, sacerdote que não acredita no anúncio do anjo, e o
nenê que será um profeta, figura típica do Antigo Testamento. Em contraste, a
Nova Aliança tem como símbolos a virgem jovem de Nazaré que acredita e cujo
filho será o próprio Filho de Deus. Mais adiante, Lucas enfatiza este contraste
nas figuras de Ana e Simeão, no Templo, (Lc 2, 25-38), especialmente quando
Simeão reza: “Agora, Senhor, conforme a tua promessa, podes deixar o teu servo
partir em paz. Porque meus olhos viram a tua salvação” (2, 29)
Por
isso, não devemos reduzir a história de hoje a um relato que pretende mostrar a
caridade de Maria em cuidar da sua parenta idosa e grávida. Se a finalidade de
Lucas fosse somente mostrar Maria como modelo de caridade, não teria colocado
versículo 56, que mostra ela deixando Isabel antes do nascimento de João.
Também não é verossímil que uma moça judia de mais ou menos quatorze anos
enfrentasse uma viagem tão perigosa como a da Galiléia à Judéia! A intenção de
Lucas é literária e teológica. Ele coloca juntas as duas gestantes, para que
ambas possam louvar a Deus pela sua ação nas suas vidas, e para que fique claro
que o filho de Isabel é o precursor do filho de Maria. Por isso, Lucas tira
Maria de cena antes do nascimento de João, para que cada relato tenha somente
as suas personagens principais: de um lado, Isabel, Zacarias e João; do outro
lado, Maria, José e Jesus.
O
fato que a criança “se agitou” no ventre de Isabel faz recordar algo semelhante
na história de Rebeca, quando Esaú e Jacó “pulavam” no seu ventre, na tradução
da Septuaginta de Gn 25, 22. O contexto, especialmente versículo 43, salienta
que João reconhece que Jesus é o seu Senhor. Iluminada pelo Espírito Santo,
Isabel pode interpretar a “agitação” de João no seu ventre - é porque Maria
está carregando o Senhor.
As
palavras referentes a Maria: “Você é bendita entre as mulheres, e bendito é o
fruto do seu ventre” (v. 42) fazem lembrar mais duas mulheres que ajudaram na
libertação do seu povo, no Antigo Testamento: Jael (Jz 5, 24) e Judite (Jdt
13,18). Aqui Isabel louva a Maria que traz no seu ventre o libertador definitivo
do seu povo.
Vale
destacar o motivo pelo qual Isabel chama Maria de “bem-aventurada” (v. 45):
“Bem-aventurada aquela que acreditou”. Maria é bendita em primeiro lugar, não
por sua maternidade, mas pela fé - em contraste com Zacarias, que não acreditou.
Assim, Lucas apresenta Maria principalmente como modelo de fé. Já no relato da
Anunciação, Maria expressou essa fé quando disse “Faça-se em mim segundo a tua
palavra” (v. 38). Assim, ela aceita não somente ser a mãe do Senhor mas a
protagonista da construção de uma sociedade de solidariedade e justiça, tão
almejada por Deus. Por isso, Lucas faz uma releitura do Canto de Ana (1Sm 2,
1-10) e coloca nos lábios de Maria o canto do Magnificat, em sintonia com a
espiritualidade secular dos Pobres de Javé, que, desprovidos de qualquer poder,
põem a sua esperança em Deus, que “dispersa os soberbos de coração, derruba do
trono os poderosos e eleva os humildes; aos famintos enche de bens, e despede
os ricos de mãos vazias” (vv. 51-53). Longe de ser uma figura passiva, a Maria
deste capítulo é modelo para todos que assumem a luta em favor de uma sociedade
alternativa, de partilha, solidariedade e fraternidade.
Podemos
também acrescentar que neste capítulo primeiro nós encontramos - na Bíblia - as
frases da primeira parte da oração da “Ave Maria”: “Ave Maria” (Lc 1,
28),“Cheia de graça” (Lc 1, 28),“O Senhor é convosco”(Lc 1, 28),“Bendita sois
vós entre as mulheres” (Lc 1, 42), “Bendito o fruto do vosso ventre” (Lc 1,
42), que demonstra que, quando tratada com fundamento bíblico, a figura de
Maria não é empecilho para uma caminhada ecumênica, pois a Escritura a aponta
como modelo de fé para todos nós!
Tomaz Hughes SVD
e-mail: thughes@netpar.com.br
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