O evangelista Marcos (também se chamava João Marcos)
foi participante das comunidades cristãs primitivas. Conheceu a Jesus através
do testemunho marcante de sua mãe, chamada Maria (cf. At 12,12). Em sua casa,
em Jerusalém, reunia-se uma comunidade. Aí os cristãos e cristãs faziam
orações, celebravam a ceia e recordavam as palavras e ações de Jesus. O próprio
São Pedro frequentava esta casa. Mais tarde, Marcos tornou-se missionário junto
com seu primo Barnabé e Paulo (cf. At 12,25; 13,5). Acompanhou também a Pedro
que tinha por Marcos uma predileção muito especial: ele o chamava de filho (cf.
1Pd 5,13).
A Tradição da Igreja atribui a Marcos a redação do
primeiro Evangelho. É o primeiro, não na lista do Novo Testamento como está na
Bíblia, mas porque foi escrito antes dos outros Evangelhos. Foi ao redor do ano
70. Nesta época, as comunidades cristãs passavam por muitos conflitos,
perseguições e problemas internos. A cidade de Jerusalém, onde morava a família
de João Marcos, foi destruída pelo exército romano. Foi destruído também o
Templo, centro político-religioso dos judeus.
Este acontecimento foi precedido pela chamada
“guerra judaica”, onde o grupo dos Zelotes liderou um movimento de forte
oposição ao Império Romano. Certamente os cristãos se perguntavam se deviam ou
não participar deste movimento. Alguns a favor, outros contra: criaram-se
divisões internas. Além disso, entre as lideranças comunitárias, existiam
conflitos de poder, competições, invejas, ciúmes... Conflituoso também era o
relacionamento entre os cristãos de origem judaica com as pessoas estrangeiras.
Havia ainda problemas sociais muito sérios: gente marginalizada, doente,
oprimida...
Dá para imaginar que estas situações causavam crises
muito sérias que afetavam profundamente a vida das comunidades cristãs. Muitas
pessoas até se perguntavam se valia a pena seguir a Jesus; algumas desistiram
deste caminho e seguiram outras propostas menos exigentes, acomodando-se no
ninho do poder e buscando seus próprios interesses...
Marcos e sua comunidade, inspirados e fortalecidos
pelo Espírito Santo, sentem que devem fazer alguma coisa para ajudar a superar
estas crises. Constatam, em suas reflexões, que há graves desvios da prática de
Jesus, expressos no cotidiano da vida das comunidades cristãs. Decidem, então,
resgatar, por escrito, a pessoa e a proposta de Jesus Cristo. E o fazem em
forma de “Evangelho”: Boa Notícia que ilumina e transforma a vida de todas as
pessoas que a lêem, a ouvem atentamente e a põem em prática.
O grande objetivo do Evangelho de Marcos é revelar
quem é Jesus. Desde o início vai deixando claro que Ele é o Filho de Deus. Esta
revelação está no começo, na apresentação do Evangelho (1,1) e confirmada por
Deus Pai no Batismo de Jesus (1,11); está no meio, quando Pedro, em nome de
todo o grupo dos discípulos, expressa que Jesus é o Cristo (8,29) e novamente
confirmada por Deus Pai na Transfiguração (9,7); e está no fim, no momento da
morte de Jesus, quando o centurião declara: “Verdadeiramente este homem era
Filho de Deus” (15,39).
Podemos dividir o Evangelho de Marcos em duas
grandes partes. O texto divisor é o da declaração de fé de Pedro (8,27-30). A
grande preocupação da primeira parte é narrar as ações de Jesus, com a intenção
primordial de mostrar que o Filho de Deus veio ao mundo para libertar o ser
humano de tudo o que o oprime. Grande parte do Ministério de Jesus acontece ao
redor do Mar da Galiléia, no meio de pessoas necessitadas, com incursões
rápidas para regiões vizinhas. Vemos que Jesus é normalmente acompanhado pelos
discípulos e uma grande multidão. Os discípulos, porém, têm uma grande
dificuldade de entender quem é, realmente, Jesus. Olham para ele e o
acompanham, imaginando que fosse um grande líder que poderia tornar-se rei, à
moda dos poderosos deste mundo. Assim, eles também poderiam satisfazer suas
ambições, tornando-se grandes. Estão, na verdade, totalmente cegos.
Na segunda parte, Jesus vai preocupar-se
essencialmente com a formação de uma nova consciência nos discípulos. As
multidões diminuem. Aqui, a intenção é mostrar que tipo de Messias é Jesus. Os
discípulos precisam ser curados de sua cegueira. A caminho de Jerusalém, Jesus
insiste que vai ser perseguido, preso, condenado e morto. Os discípulos não
entendem e não admitem que tal coisa aconteça. Pelo contrário, discutem entre
si quem vai ser o maior. Na verdade, somente vão entender quem é Jesus, após
sua morte.
O Evangelho de Marcos, portanto, nos revela o
verdadeiro rosto de Jesus, o Filho de Deus, que morou entre nós e nos resgatou
de nossa condição de pecadores para uma vida em plenitude. Ele veio para servir
e não para ser servido. Este é um dos principais recados deste Evangelho: os
seguidores e seguidoras de Jesus não devem entrar no jogo do poder. O Reino de
Deus – o mundo de fraternidade, de justiça e de paz -, somente acontecerá se
promovermos entre nós, a partir de nossa casa e de nossa comunidade, relações
baseadas no serviço mútuo, no perdão recíproco, na tolerância respeitosa, na
partilha segundo a necessidade de cada pessoa... Enfim, o Reino de Deus está no
meio de nós, na medida em que assumimos atitudes cotidianas que expressem o
amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos.
Celso Loraschi
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